[Edição #41]
O vento às vezes parece faca afiada. Não se vive sem capa de chuva, e os casacos nunca desfrutam de uma temporada sossegada no fundo do armário. Mal me lembro da última vez em que calcei uma rasteirinha. Atividades ao ar livre, e até mesmo dentro de casa, saem caras, e as paisagens planas acabam por enjoar. Superada a fase de achar encantadores os poucos moinhos e suspirar pelas tulipas que florescem por meros três meses (de um ano inteiro!), o país parece perder sua graça. Morar na Holanda é um saco. Adorável incoerência para alguém que se estabeleceu aqui no final de 2019.
Para ser justa, agora nos aproximamos do equinócio da primavera, quando finalmente me livro da depressão sazonal que me fazia amarrar a cara aos Países Baixos. Passar semanas seguidas sem ver um raio de sol deprime cabeças fracas que cresceram fritando debaixo de muito sol no Hemisfério Sul.
Uma das vozes na minha mente manda parar dar palco às implicâncias. Até me faz pensar num azedume muito similar ao que experimentei nos últimos anos morando em São Paulo. As cidades se esgotam aos poucos dentro de nós, ou passamos a embelezar esses argumentos quando queremos mudar de endereço. Ao passo que criamos hábitos e normalizamos o cotidiano, as coisas talvez percam um pouco do encanto. Quando o problema reside no indivíduo, talvez não seja tanto uma questão de localização. Repito isso em voz alta nos momentos de frustração gritante. Contudo, é verdade, sinto inveja daqueles que se apaixonam cada vez mais pelo lugar onde vivem.
No último domingo participei de uma prova de corrida oficial em Haia. Tinha duas meias maratonas nas costas quando lesionei o joelho em 2016, e desde então a constância na corrida despencou. Mesmo nas fases mais regulares após recuperação, quando corria três vezes por semana, ultrapassava raramente os sete quilômetros. Desta vez me desafiei a uma prova de resistência disfarçada de desafio e me inscrevi numa distância mais longa: dez quilômetros.
Enquanto me acostumava à corrida, percebi o quanto funcionava como uma meditação ativa. Sem a pressão de performance ou metas a cumprir, a atividade me ajudava a esvaziar a mente dos problemas e a refletir melhor sobre questões pessoais. Até mesmo ideias para textos surgiam enquanto corria, levando-me a situações meio ridículas em que anotava referências no celular ou gravava um áudio meio ofegante para não deixar essas ideias escaparem.
Durante a prova no último fim de semana, passei o percurso pensando se existe uma virada de chave onde a vida longe do Brasil deixa de ser estrangeira. Vez por outra amigos brasileiros recém-chegados na Europa perguntam quando a angústia de estar tão longe deixa de doer. Com duas mudanças de país, costumo dizer que os seis primeiros meses são um bom termômetro. Metade de um ano inteiro é tempo suficiente para uma significativa avaliação.
A dor não vai embora, ninguém se esquece subitamente do que deixou para trás. Estabelecer uma rotina e encontrar atividades que nos fazem nos sentir em casa deixa a experiência mais leve e toleramos melhor o desconforto. O que for elaborado a partir deste ponto vai muito da experiência de cada um.
Morar no exterior não é tudo isso. É possível fazer uma lista equilibrada de vantagens e desvantagens, mas é tentador idealizar a experiência, principalmente ao acompanhar a vida dos amigos nas redes sociais. Encontrar maneiras de tornar esses lugares estrangeiros estáveis para o nosso crescimento é um desafio diário e, vou dizer, é bastante doloroso.
Durante os dez quilômetros, comecei a simpatizar com a cidade, apesar do céu embrutecido. Passei por parques e estabelecimentos onde compartilhei momentos memoráveis com pessoas especiais, o que acalmou meu coração. Ter me estabelecido na Holanda me proporcionou a oportunidade única de realizar um sonho antigo: conhecer culturas diferentes da minha. Na França, talvez não tivesse acesso a tanta diversidade cultural. Embora o contato com os holandeses seja limitado e muitas vezes influenciado pelos parceiros latinos, predominam as interações com pessoas de todas as partes do mundo.
Essa mistura de perspectivas é tão enriquecedora que na maior parte do tempo não importa o solo sob os meus pés. Não ter um chão confortável nem sempre é motivo para trocar de sapatos. Tentar me adaptar me tornou menos exigente e mais capaz de me satisfazer com menos. A conclusão da meditação de domingo foi que as queixas pelos dias horríveis vão existir como existiriam na França ou no Brasil, pois da vida não temos controle algum. Mas me acalma saber que as dificuldades nunca engolem as pequenas felicidades e conquistas.
Para cada paisagem monótona, haverá sempre uma tarde chorando as pitangas com as amigas. Ou um clube de leitura para compartilhar com outras pessoas a paixão pela literatura. Livrarias com cheirinho de café passado. Cookies feitos com carinho por uma senhora em homenagem à avó que inventou a receita. O cinema de rua que me desliga da realidade. As longas caminhadas ou corridas silenciosas na floresta próxima de casa. Os cachorros no meio do caminho. Novos endereços para desbravar com meu parceiro, e mesmo os raros, mas presentes dias ensolarados em que corremos até a praia para estocar Vitamina D.
Na Holanda, aprendo diariamente sobre a arte de transformar adversidades em oportunidades. Apesar dos contratempos, o país tem me ensinado a repensar minhas urgências e a aproveitar ao máximo os dias de calmaria.
Tá vendo? Tudo bem achar a Holanda um saco. Isso só me faz valorizar em dobro os momentos em que baixo a guarda e vejo nela um punhado de beleza.
Para além dos Estrangeirismos
Encontrando calma em meio a tempestades emocionais, com Ediane Ribeiro. Esse episódio do podcast Bom dia, Obvious me serviu de terapia auditiva. A meu ver, casa um pouco com o tema da edição de hoje. Peguei algumas referências preciosas para lidar com os momentos de frustração emocional que surgem especificamente por ser imigrante.
Self-compassion isn’t always soft, com Kristin Neff (em inglês). Embora não tenha ouvido outros episódios do Ten Percent Happier, podcast do jornalista Dan Harris, estou no processo de me tornar uma discípula de Kristin Neff, e este episódio foi uma introdução precisa na minha exploração sobre autocompaixão.
Por que não vivemos o presente?, da Tatiany Leite. Enquanto reclamona nata e inquieta crônica pelas angústias do futuro, esse vídeo pegou onde dói.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, sinta-se em casa! Obrigada pela confiança. Espero que encontre conforto nesses escritos. Te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último domingo de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro e até a próxima!
Obrigado por esse texto, pela sinceridade. Isso é uma coisa que a gente, que acaba romantizando viver no exterior, precisa ler e ouvir. Ainda mais lembrando o quanto você já esteve empolgada com a Holanda. Realmente, a gente acaba normalizando tudo, é engraçado. Mas que bom que você ainda consegue ver beleza nas coisas. Acho que essa corrida foi realmente excelente!
E interessante essa ideia de não pertencimento, que até a Rafaela estava abordando esses dias. E outra coisa é isso que você falou (e que minha psicóloga também disse quando eu estava pra me mudar daqui): não adiantar se mudar se você não muda por dentro. Não adianta buscar fora, é simples assim.
lindo texto.
eu tô há mais de 8 anos no estrangeiro e nunca perco a sensação de estar em un outro lugar - o mais impressionante é que visitar o Brasil me provoca a mesma sensação. então percebo que é nas pessoas que ela cai, acho que encontro lar nos abraços mesmo e é isso.