14h40. Quarenta minutos pulando de uma rede social a outra, sentada na recepção quase deserta. Quando meu nome foi chamado, tentei disfarçar a cara de insatisfação sem muito êxito. A luz amarela deu lugar ao desconforto aos olhos, uma luz branca, fria. Um senhor de cabelos brancos, óculos de armação pequena demais para seu rosto oval, e um sobrenome impronunciável me mostrou alguns dados na tela do computador, trocamos algumas palavras e, sem muita cerimônia, me dirigi ao biombo atrás da mesa. Enquanto dobrava a calça e a calcinha, mentalizava que não poderia ser tão mal assim, passaria rápido e em menos de 15 minutos eu pegaria a bicicleta de volta para casa.
Ledo engano.
Eu, com as pernas abertas, desconfortável na maca fria, e um senhor holandês comentando que esteve uma única vez no Brasil para uma convenção no Rio de Janeiro, em 1989. Eu não era nem nascida. Anos mais tarde, em 2022, estava fazendo um dos exames mais desconfortáveis da história com um homem que atua como médico há mais de trinta anos.
Não me lembro da primeira vez que fiz um papanicolau, mas deve fazer pelo menos uma década. É tenebroso ter um negócio enfiado no canal vaginal, mas a gente nem sempre imagina que este rápido e desconfortável procedimento pode piorar. O objetivo é colher o material e submetê-lo a um teste para avaliar se a paciente tem HPV ou não. O plot twist, contudo, foi o senhor todo pimposo anunciar que aproveitaria para fazer uma biópsia just in case, pois mais seguro despistar visto que a paciente já está em posição de derrota.
Meu útero é profissional em me causar dores horrendas. É assim com as cólicas menstruais, foi assim quando coloquei um DIU e só tive sossego ao tirá-lo. Suava frio de vontade de fechar as pernas e me vestir novamente quando vi o médico chamar a assistente e retirar o que parecia ser uma tesoura envolta num plástico protetor da gaveta. Um objeto de tortura? Que raios ele ia fazer com aquilo?
Minha pressão despencou. O breve procedimento que parecia ter começado há uma hora só prolongou a agonia. O doutor iniciou o diálogo com a assistente em inglês, mas logo passou ao holandês. Puro ruído aos meus ouvidos. Em qualquer procedimento ginecológico, todas as médicas que me atenderam até este dia cultivavam o hábito de me preparar para a dor. “Você vai sentir um leve incômodo”, que era seguido por uma cólica pavorosa, mas a gentileza em avisar que algo cutucaria o colo do meu útero, num truque de mágica, trazia certo alívio.
Tenho pouca experiência me consultando com ginecologistas homens. Minha médica, uma alemã straight to the point que efetuou o exame (sem biópsia) com delicadeza e eficiência no ano passado, pegou covid pouco antes da nossa consulta e precisou me encaixar na agenda do médico de nome impronunciável. Um homem, por motivos óbvios, nunca saberá o tamanho da dor em ter o útero cutucado. E assim foi - ele fincou aquela espécie de tesoura horrenda em mim e urrei meu mais profundo e inspirado PUTAIN.
(Um breve disclaimer: não é arrogância, mas após três anos sob o mesmo teto de um francês e falando mais francês do que qualquer outra língua no cotidiano o putaquepariu foi substituído pelo putain)
Sem nenhum contato visual comigo, paciente, o médico continuou a falar com a assistente. Acho que pesquei um “groter” (maior), contudo há de se duvidar da minha capacidade em captar qualquer coisa considerando o meu parco conhecimento da língua holandesa. A assistente me encarou com olhos imensos, apavorada, exclamando ‘you are almost transparent’.
A luz branca do consultório pareceu congelar o resto da alma. Minhas mãos, frias, começaram a formigar e senti que a qualquer momento poderia vomitar e desmaiar. Não necessariamente nesta ordem.
Mais uma fisgada, mais um PUTAIN JE VAIS MOURIR ainda mais agudo. Pedi um copo d’água e a assistente perguntou se eu também não queria um comprimido dele, o famoso paracetamol, proposta devidamente aprovada ante a dor excruciante que sentia no meu útero.
O ginecologista me pareceu sem jeito, talvez tenha tido o azar de atender uma mulher mole e com baixa resistência. Sendo alguém com 20 tatuagens que só se queixou da dor quando tatuou a costela, é curiosa essa fragilidade na região uterina. Embora não tenha desmaiado e tampouco vomitado, precisei passar um tempo deitada antes de sair do consultório. Dar um tempo para a alma voltar ao corpo.
O que mais pegou num ponto de desconforto, todavia, foram as trocas entre o médico e a assistente. É isso mesmo. Moro na Holanda há três anos e ainda não falo holandês. Não sinto orgulho disso, na verdade tenho até vergonha. Fiquei revoltada por não entender o diálogo e estar desestabilizada demais para perguntar, em inglês, o que rolou durante a biópsia. Passei três dias sangrando depois do exame e até hoje não sei se isso era normal.
Os resultados dos exames foram ótimos, estou bem, porém no momento que fechei a porta do consultório, às vésperas do meu aniversário de três anos de Holanda, decidi dar fim nessa palhaçada orquestrada por mim mesma.
Dei colo a culpa este tempo todo. Quando me instalei em Haia, a prioridade era encontrar um emprego e a língua ficou para segundo plano. Eu não contava com uma pandemia. O confinamento e todas as incertezas trazidas pela COVID-19 foram a deixa perfeita para adiar ainda mais o meu projeto de falar holandês. Após um longo ano camelando em busca de trabalho, fui atrás de algo fora da minha área e descobri que trabalhar com atendimento ao cliente minaria ainda mais minha energia e disposição para fazer qualquer coisa pós (ou antes, se considerarmos meus shifts noturnos) expediente.
Em outras palavras, criei uma série de desculpas excelentes. As famosas “outras prioridades”. Acreditei ser o emprego na minha área o ponto final da espera. Mais uma vez, uma doce ilusão. Foi deslumbre total ser respeitada, trabalhar com pessoas que me escutam e reforçam o quanto meu trabalho é importante. Com direito a horários normais e fins de semana livres! Mergulhei sem medo de ser feliz, e esta talvez tenha sido a etapa final para enterrar as desculpas, dar um tapa na cara do medo e encarar o aprendizado da minha quarta língua.
Sou o rosto da insegurança, sobretudo no que diz respeito a falar outras línguas. Talvez pareça irreal caso você me veja mantendo uma conversa em francês ou em inglês com naturalidade. Foi, entretanto, uma luta comigo mesma até aceitar que eu era capaz de me fazer entender e que não havia necessidade alguma em ser confundida com um nativo. Não precisava ser perfeito.
O medo me manteve distante da língua holandesa. O desespero em estar desempregada e outras agonias advindas do transtorno de ansiedade também. Pois basta! Chega de fazer cara de paisagem enquanto holandeses podem estar me insultando. Partiu acalmar os ânimos dos locais que duvidam da minha capacidade.
Rodei a baiana a compartilho aqui uma das principais metas para 2023: aprender essa língua maldita na força do ódio! Nem que seja para sofrer menos num exame de rotina e responder à altura.
Primeira cartinha de 2023! Confesso, não saiu como gostaria. Mas não quero perder o ritmo e deixar de enviar uma nova edição a cada duas semanas. É um exercício para mim, e vai levar tempo até ser aperfeiçoado. Faz parte. Espero que você tenha passado uma ótima virada de ano e que Janeiro seja um mês gentil com todos nós.
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!
Fiz o papanicolau com duas médicas mulheres diferentes aqui na Holanda e as duas vezes foram experiências horríveis. Não lembro de doer tanto no Brasil. Estou pensando até em fazer em casa da próxima vez que eu receber a cartinha. Sabia que dá pra fazer em casa?
Minha meta pra 2023 também é me dedicar ao holandês. Eu estudei algumas vezes, mas largava as aulas sempre que eu via que eu não estava aprendendo muito. Acho que as pessoas aqui também não ajudam, né? Assim como você, aprendi francês porque morei em Bruxelas antes de me mudar pra Amsterdã e lá eu não tinha outra opção a não ser entender e falar francês.
Boa sorte na sua jornada de aprendizado. :)