Após um dia inteiro falando francês, às vezes me pego rindo sozinha. Penso no longo percurso de aprendizado e a fluência parece piada. Quando estudei francês pela primeira vez, o interesse era limitado, nada urgente. A preocupação maior era atravessar o Ensino Médio e passar no vestibular. Foi frustrante ao ponto de, após um ano e meio de curso, abandonar e prometer a mim mesma nunca mais tentar outra vez. O cuspe caiu na testa alguns anos depois, quando vi o livro de capa alaranjada marcado “Tout va bien!” em letras garrafais vermelhas na mesa de uma colega da universidade e pensei que talvez fosse uma boa ideia tentar outra vez.
Os objetivos mudaram. Em 2010 despedia-me da adolescência enquanto desbravava São Paulo. Eram outros tempos, e as responsabilidades da vida adulta ainda não me pesavam os ombros. Assim como na primeira tentativa, aprender francês passava longe de uma obrigação. Era o entretenimento das manhãs de sábado, e ainda tinha uma turma maravilhosa de colegas. A parte desafiadora de aprender uma nova língua ficou bem mais leve.
Ao passo em que tudo parece recente, já faz uma cara. Foi quase uma década de Aliança Francesa, dois anos de mestrado na França, quase quatro anos num relacionamento com um francês. Hoje a língua povoa o meu cotidiano com uma naturalidade tão absurda que todas as dificuldades daquela primeira tentativa, ainda no Ensino Médio, até parecem invenção da minha cabeça.
Tampouce, o primo humilde do mil-folhas francês. Doce típico do Koningsdag.
Quando cheguei na Holanda, escorreguei na tentativa de aprender holandês. Durou um ano e meio, assim como o primeiro contato com o francês. Entre o desemprego e a primeira experiência profissional nestas terras, a facilidade em poder sobreviver apenas com o inglês serviu como uma luva. Só agora, quase dois anos mais tarde, cogitei aventurar-me outra vez.
A motivação maior foi o ódio. É frustrante viver uma realidade onde a língua é um estorvo. Ademais, tendo a vida menos desalinhada que na época da mudança, a areia movediça do processo de aprendizagem deixou de ser ameaça.
Mantive os olhos abertos a tudo que dá corpo à língua holandesa enquanto me virava com o inglês. Tive mais oportunidades em ser exposta à cultura local conforme saía de casa e tinha breves interações com holandeses no ambiente de trabalho. Conhecer costumes locais prepara o território e ajuda a entender melhor como a língua se molda ao longo dos anos, além de acostumar os ouvidos aos sons que mais parecem um disco furado num primeiro momento.
Diante da mínima tentativa do estrangeiro em se expressar na língua local, os holandeses logo passam para o inglês. Já criei muitas teorias em torno dessa atitude. Pode ser falta de paciência com quem tá começando, ou mera vontade de facilitar a vida de quem tem dificuldades em se expressar numa língua tão complicada.
Em contrapartida, noto o quanto o básico basta aos holandeses. Aquela camada extra de esforço tão comum à cultura brasileira praticamente não existe nos Países Baixos. A lei daqui é fazer o básico, o que está ao seu alcance. O go the extra mile é bônus. No trabalho, por exemplo, ninguém vai julgar caso você faça mais do que foi pedido ou proponha algo além do que estava no escopo inicial. Mas pode acontecer de perguntarem por que você gastou o seu precioso tempo fazendo algo a mais.
Outro bom exemplo está na sala de aula que passei a frequentar nos últimos meses. Um dos meus colegas faz muitas perguntas. A professora já o cortou em diversas ocasiões, por vezes reclamando por ele ser muito questionador, por vezes alegando que aquelas dúvidas não possuem relevância alguma para um aluno iniciante.
Esses pequenos recortes ajudam-me (aos trancos e barrancos) a acalmar os ânimos. A angústia em não sentir progresso algum no aprendizado do holandês é mero reflexo do quanto a ansiedade ainda me devora nos mínimos detalhes. Quando me sinto mal por mal conseguir balbuciar algumas frases, rebobino as memórias e tento revisitar as indignações da minha versão mais jovem que não se conformava em não conseguir pronunciar o R do francês.
Deixei de ser noiada com a gramática das línguas que domino bem, e parei de virar os olhos para erros tanto na escrita quanto na fala. O importante é me fazer entender, e essa é a máxima que abraçarei toda vez que me sentir mal por ainda não falar holandês. Da minha parte, concilio quatro línguas dentro da caixola e os escorregões não poderiam ser mais comuns. As pessoas do meu convívio, em grande maioria, precisam transitar entre pelo menos duas línguas distintas.
Em suma, não está fácil para ninguém. E por que é tão difícil apertar o botão do desapego e dar cabo à tanta impaciência?
Para além dos Estrangeirismos
Hoje é Dia do Rei, vulgo feriado mais importante do país Holanda. O Rei divide a data com a Maíra Mello, que escreve uma das minhas newsletters favoritas. Na edição enviada hoje, ela conta mais sobre o processo de reaprender a comemorar aniversário e conta um pouco sobre o feriado holandês. Leitura imperdível.
A Isa Sinay publicou um texto onde compartilha mais sobre o seu primeiro contato com Fiona Apple e como a cantora foi conquistando espaço na vida dela. Sou apaixonada pelo trabalho de Fiona, ela é de longe uma das minhas artistas favoritas. Devorei a carta enquanto tirava o pó da minha playlist com as favoritas dela.
Nas últimas duas semanas li cartas maravilhosas de autores que dividem a mesma casa no Substack. Se você está em busca de boas referências, dê uma conferida na minha página de recomendações.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!
Vejo muitas semelhanças com a cultura e língua sueca. Essa coisa de estranharam fazer mais que o esperado no trabalho é bem comum aqui também. Acho que a gente vem de uma cultura onde o trabalho é prioridade, foi difícil no início pra mim me desvencilhar desse modus operandi, eu buguei a primeira vez que minha chefe disse "ta tudo bem vc trabalhar menos hoje pra cuidar da sua filha doente" ou "só faça o que vc conseguir, não aceite dar conta de tudo". O equilíbrio entre vida profissional e pessoal é uma das coisas que mais admiro por aqui.
Também vivo bugada com o cérebro multilíngue e ainda patinando no sueco, estudando, parando, seguindo frustrada, as vezes motivada, uma montanha russa. Por aqui também não é fácil praticar, um sotaque torto eles já mudam pro inglês — acho que para facilitar a vida de quem não fala (mas desfacilita a de quem quer aprender hahahaha). E o que Maíra escreveu sobre as regras gramaticais "é assim porque é" eu já cansei de ouvir de professores diferentes, é meio frustrante pra quem está aprendendo não ter um norte sequer de regras "com o tempo vc aprende".
Mas seu texto me fez enxergar que é com o tempo mesmo que a gente aprende, foi assim que aprendemos as outras línguas afinal. Uma palavra de cada vez.
Esse seu relato do aluno que pergunta demais me lembrou que, quando comecei a estudar holandês, eu vivia perguntando o motivo por trás de algumas regras do holandês que não faziam sentido pra mim, e a professora sempre respondia algo como "é assim porque é" e eu então aceitei que o holandês é assim porque é e parei de perguntar.
Fico pensando se você não faz uma grande mistura de todas essas línguas que você fala ou está aprendendo. No meu caso, como eu aprendi o francês na Bélgica um pouco antes de me mudar pra Holanda, eu misturo um monte de coisas das duas línguas. Eu estava até querendo voltar a estudar francês aqui na Holanda, mas achei melhor não porque aí mesmo que meu cérebro vai bugar. Mas adoro ler relatos de pessoas que cresceram bilíngues. Tem um livro que gosto muito: "Viver entre línguas" da Sylvia Molloy. Conhece? Se não, eu super recomendo.
E obrigada pela recomendação do meu texto. ❤️