[Para ler ao som de Benzin, do Boogarins]
Tudo parece desproporcional aos olhos das crianças, especialmente quando recebem um diagnóstico incipiente de miopia. Aconteceu comigo. Desde jovem enfrentei dificuldades para identificar formas distantes, um problema agravado pelo astigmatismo que deixava o mundo fora de foco. Interpretava a realidade com base no que era permitido para uma visão turva. Quando me mudei de Cassilândia para Campo Grande, pouco após completar dez anos, fiquei impressionado com o quão amplas as distâncias tornaram-se.
Antes, tudo parecia se acomodar facilmente nos quilômetros percorridos de bicicleta, mas os primeiros anos vivendo na capital do Mato Grosso do Sul deixaram-me com o coração apertado ao vê-la acumulando poeira.
Embora as proporções tivessem se expandido para a pré-adolescente míope, uma sensação blasé habitava em mim, diminuindo o valor do Mato Grosso do Sul. As férias escolares na casa de familiares em Goiânia se tornaram o padrão para tudo. Quando criança, brincava com as primas nas varandas das casas das minhas tias. Se ninguém estivesse disponível, me virava sozinha, reunindo bonecas e Barbies, e criando histórias para elas.
Durante a transição para os primeiros anos da adolescência, troquei os brinquedos por papel. Quando não escrevia histórias absurdas em folhas de papel sulfite, perdia a noção das horas imersa em séries de mangás e livros.
O elemento comum entre a infância e a adolescência era o espaço físico. As casas e apartamentos eram diferentes uns dos outros, mas raramente eu saía daquele ambiente. Houve ocasiões para ir ao Mutirama, sujar os dedos com a pipoca amanteigada do Cinemark, comprar panos de prato na Feira da Lua e acompanhar os adultos ao shopping. No entanto, pouca coisa mudava em relação à rotina em Cassilândia ou em Campo Grande.
Em outras palavras, o cenário geográfico mudava, mas eu continuava cercada por adultos e seguindo as instruções por eles designadas. Permanecia, inclusive, no mesmo Cerrado que encardia as chinelas com terra vermelha. No entanto, do alto dos meus dez anos, Goiânia era considerada melhor por ter mais shoppings e diversas opções de sebos, algo que eu acreditava que Campo Grande jamais alcançaria.
Estive em Goiânia pela última vez em 2017, pouco antes de me mudar para a França. Foi corrido visitar o máximo de casas possível. Apesar da brevidade da estadia, consegui levar uma tatuagem feita por uma das minhas primas como lembrança de todas as vidas entrelaçadas em território goiano.
Até hoje, minha visão continua prejudicada. A miopia e o astigmatismo aumentaram e, com o passar dos anos, não apenas a visão se cansou. Os cabelos grisalhos triplicaram, o metabolismo tornou-se preguiçoso e esse punhado de anos no hemisfério norte terminaram de desconfigurar as proporções. Passar tanto tempo enxergando Goiânia sem óculos aumentou o sentimento de estranhamento quando desembarquei lá em maio deste ano.
Tudo parecia desproporcionalmente pequeno ao revisitar um dos lugares centrais da minha infância. Senti-me como se tivesse sido lançada numa máquina do tempo, onde, apesar da chuva torrencial de prédios desalmados fervilhando no horizonte, nada parecia ter mudado.
Painéis imensos ainda ocupam as fachadas das lojas da Fama, assim como as fiações elétricas tão similares a veias pulsantes. Os centros comerciais são os mesmos, apenas com toldos mais desbotados e, às vezes, cobertos de tapumes. Anúncios e ofertas de serviços marcados com tinta ainda decoram muitos dos muros da cidade. As casas parecem menores do que antes, e eu já não me lembrava de como alguns espaços careciam de calçadas, que não eram nem um pouco acolhedoras para os pedestres.
Enxergar Goiânia acocorada foi adorável, por mais que soe como se o efeito fosse oposto.
À medida que as distâncias ampliam-se ao longo da existência, o passado parece encolher para se encaixar nas caixinhas da memória. Parece que a minha visão já assumiu a missão de organizar gradualmente os arquivos para o museu da minha vida. Com uma lente ampliada, consigo enxergar as semelhanças entre Campo Grande e Goiânia e entender por que a capital de Goiás parecia tão imponente.
Assim ela deve permanecer. Referência suprema de cidade grande para uma criança que nem sonhava com a existência de verdadeiros centros urbanos que a engoliriam em meio a tanto concreto. Tão majestosa quanto a felicidade turbulenta de uma jovem que amava ralar os joelhos naquela terra vermelha.
Para além dos Estrangeirismos
Na edição #20 de Estrangeirismos, a Clara, autora de uma das minhas newsletters favoritas, compartilhou um poema que dialoga bastante com a crônica daquela edição. É de Orides Fontela e gostaria que você apreciasse comigo:
Só porque
erro
encontro
o que não se
procura
só porque
erro
invento
o labirinto
a busca
a coisa
a causa da
procura
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!