[Edição #31]
[Alerta de gatilho]
Esta é uma carta sobre menstruação e depressão.
Poucos dias antes de menstruar, o desempenho do corpo despenca. Começa pelo inchaço na região abdominal, segue para os seios doloridos que ficam duros feito pedra, e desemboca em desconforto extremo nas coxas. Como se tivesse passado três horas correndo. O intestino fica instável, às vezes dá crise de enxaqueca. Não bastasse o incômodo físico, por dentro tudo corrói. Sou tomada por um desejo incomensurável de afundar. Buscar o fundo do oceano e de preferência nunca mais submergir.
A menarca em 2001*, na véspera do meu aniversário de dez anos, trouxe-me alguns traumas e uma vergonha imensa de assumir que todo mês, a cada tensão pré-menstrual, eu sentia um desejo fora do comum de desaparecer. Enquanto o endométrio se preparava para se descamar e causar-me cólicas nada agradáveis, ele aproveitava para tirar também um pouco da minha vontade de viver.
Em Are you there, God? It's me, Margaret, de Kelly Fremon-Craig, Margaret (Abby Ryder Fortson) acaba de se mudar para New Jersey com a família. Ela tem onze anos e pouca dificuldade no processo de integração. A vizinha, igualmente colega de classe, logo a envolve no grupo de amigas que sonham em ter peitos, dar o primeiro beijo, menstruar, e desfrutar de tudo que parece tão incrível sobre ser mulher.
Descobri nos créditos que o longa é uma adaptação do livro homônimo, que não li. O filme, contudo, é um retrato leve sobre o primeiro contato de uma menina com temas do universo adulto. Talvez a abordagem seja um pouco rasa, mas pareceu-me um bom ponto de partida para debater com adolescentes pautas como religião, mudanças no corpo pós-menarca e bullying.
O que me marcou, no entanto, foram as sequências em torno da menstruação. No começo, as quatro meninas ainda não menstruaram e ficam horas a questionar como é estar menstruada. Dali adiante é interessante ver como cada uma reage ao descobrir que desceu (perdoem-me, mas me recuso a usar a expressão “estar de chico” ou “estar naqueles dias”). Sobretudo aquela que parece ser a mais "forte" do grupo, a que mais anseia pela menarca, e no final se vê chorosa e sem reação ao se deparar com o sangue na calcinha.
Tudo em torno das regras me apavorava nos primeiros anos. Na escola já falávamos sobre o primeiro sutiã, mas não tive coragem de contar a ninguém que lutava contra cólicas intensas há meses. Morava no interior de Mato Grosso do Sul e algum tempo depois nos mudamos para a capital, Campo Grande. Por lá, a história repetiu-se. Ainda sentia vergonha e só contei sobre depois que pelo menos três colegas menstruaram.
Quando era mais nova, tinha dificuldade em associar desânimo ao período pré-menstrual. Demorei muito tempo a entender como meu corpo reagia àquela mudança e o horror que meu psicológico sentia ao trocar tantos absorventes ao longo do dia, lidar com o odor do sangue menstrual, e sentir uma dor descomunal. As cólicas causavam tontura, às vezes enjoo, e um oceano de frustrações.
Procurei ajuda médica para sair dos consultórios com uma cartelinha de ibuprofeno e aquela afirmação de que é normal sentir dor quando vamos menstruar ecoando na cabeça. Era inconcebível que fosse normal sentir dor, mas quem era eu para contestar quem se dedicou a anos de estudo para se tornar ginecologista?
Anos mais tarde, transitei entre a suspeita de ovários policísticos e endometriose, ambas investigadas, porém sem respostas concretas. Tomei anticoncepcional por um tempo e até dei uma chance ao DIU hormonal, mas meu corpo não se adaptou e achei melhor tirar. Seis meses mais tarde, livre de hormônios, recebi bandeira branca. As cólicas abrandaram-se e o fluxo diminuiu.
Foi do dia para noite e me parecia surreal ter cólicas tão leves e quase não me sentir menstruada. As comemorações duraram pouco, pois de uns dois anos para cá os quadros depressivos na véspera da menstruação se agravaram. Os inchaços também. Coincidiu com o início da pandemia e vem se arrastando desde então.
Usar um coletor menstrual no lugar dos absorventes e renunciar aos contraceptivos hormonais fez-me prestar mais atenção às fases do ciclo menstrual. Essa compreensão ajuda a respeitar o lado animalesco do corpo, as tais coisas ‘naturais’ e imutáveis. Tudo aquilo que é biológico e cabe a mim achar a melhor forma de lidar. Nada me prepara, porém, para a carga mental dos dias que precedem a menstruação e os primeiros três dias de ciclo.
Nessa semana, enquanto lidava com esta queda de humor menstrual, fiquei horrorizada com os meus próprios pensamentos e não suportei meio segundo de frente para o espelho. Já são muitos anos de terapia buscando autoaceitação e um bump na autoestima. E ainda mais tempo tentando contornar as oscilações de humor e conviver de forma pacífica com elas, mas a solução não vem fácil.
Em partes preparo-me um pouco, tento não me deixar levar, pois sei que a cabeça está fragilizada, mas estou de saco cheio do quanto esses sintomas respingam na minha insegurança. Insegura de base, quando a TPM bate, sinto-me o pior ser humano do planeta.
Aquela impressão estranha de que diversas coisas ruins começam a se atropelar em efeito dominó justo quando a minha mente está me consumindo parece se confirmar. Nessas horas parece que nada sai do lugar, e quando tento movimentar-me, é para tomar tombos.
Se sangrar não é gráfico o suficiente, talvez seja preciso se armar de palavras. Movimentar-nos para o assunto ser mais debatido e tratado com seriedade na área médica.
É agonia pura tentar nadar contra a maré. Desta vez deu-me vontade de desistir e viver o azedume sem pedir desculpas a ninguém. E em seguida fiquei com sangue nos olhos pensando que talvez a gente não converse o suficiente sobre menstruação e toda carga advinda dela.
Quiçá era meu turno de gastar palavras para abrir espaço ao diálogo. Deixar um lembrete às pessoas que menstruam e sofrem demais com o ciclo: precisamos fazer barulho.
*A menstruação também foi gancho para minha análise de Barbie, de Greta Gerwig. Você pode lê-la aqui.
Para além dos Estrangeirismos
Tinha cogitado escrever sobre o livro de contos de Mariana Enriquez para aproveitar o bondinho do 31 de Outubro. Terminei optando pelo sangue menstrual, que pode ser um verdadeiro horror para algumas pessoas. Como esse perfil ama literatura, vou passar a bola pra Vanessa Guedes desta vez. Na semana passada ela listou alguns livros de horror na Segredos em Órbita. Já se preparem para aumentar a lista de desejos!
Tô tentando, mais uma vez, movimentar meu Instagram “literário”. Uso para divulgar edições novas da news, mas também aproveito para compartilhar dicas de leitura. Encontre-me por lá para conversarmos mais sobre livros!
Minha amiga Nathalia lançou o seu primeiro livro, Caminhos de Ida, este ano. Vai rolar lançamento nesta sexta-feira. Se você mora em São Paulo, lhe convido a prestigiá-la e dar-lhe um abraço apertado da minha parte. Neste link ela conta um pouquinho sobre o processo de criação do livro. As informações sobre o evento estão aqui:
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Obrigada por essa reflexão. Sempre sofri com cólicas e TPM, já fiz mil exames, não tenho nada clínico e passei a vida em busca de ginecologistas que entendam de forma holística o meu quadro. Na minha última TPM, eu me sentia um bicho ferido gritando de dor sozinho, uma depressão avassaladora como há tempos (anos) não vinha, de querer botar a casa abaixo, chorar sem parar me retorcendo de tristeza...e aí as cólicas. Três dias de cólicas insuportáveis. Eu entendo que faz parte de um ciclo - se no período me alimentei bem, exercitei, etc - mas não pode ser só responsabilidade de quem menstrua essa regulação. A medicina, mercado de trabalho e sociedade menosprezam o quanto isso impacta na nossa vida. Acho - porque ninguém ainda cravou um diagnóstico - que eu sofro de transtorno disfórico pré-menstrual, muitas vezes eu viro outra pessoa nesses dias e é muito doloroso (física e emocionalmente). A gente precisa fazer MUITO BARULHO, com essa fúria e dor todas, até que deem a atenção urgente e necessária a esses pontos. Ah, minhas amigas que menopausaram relatam o mesmo descaso em relação ao que passam nessa fase de chegada da menopausa.