[Edição #39]
Essa edição encerra a trilogia do ódio. Não é necessário ter lido os dois textos anteriores. Caso queira conferi-los, deixo os links abaixo:
O formato e o tema do texto de hoje foram inspirados neste texto da vizinha de Substack Vanessa Guedes, da newsletter Segredos em Órbita.
[Alerta de gatilho]
Esta carta aborda transtornos alimentares
that's where the pain comes in like a second skeleton
tryin' to fit beneath the skin, I can't fit the feelings in, oh
1) Encaro o espelho e em nada me apetece o que vejo. O corpo carrega marcas e formas da passagem do tempo, mas se penso na mesma cena cinco, dez anos atrás, assumo: a forma física nunca foi do meu agrado. Odiava menos quando o incômodo só se manifestava ao me despir. Observar transformações físicas me fizeram perder o costume desse corpo. Chego a me sentir meio alheia, como se a alma não colasse com a carne. Ir às lojas não me inquietava, tinha o conforto de poder pedir tamanho P sem medo. Hoje já sei que posso pular as araras com itens S.
2) Na toada insana das estações e transportes públicos, procurei sedativos. Após um dia inteiro de escritório sugando cada gota de energia que me restava, realizava o trajeto de ônibus até a estação já pensando nele. Entrava na estação comprando um cookie de chocolate, engolido sem muito pesar na caminhada da plataforma até o trem. Tinha cinco minutos de alívio até começar a regurgitar a culpa por ter comido algo que nem queria tanto assim. Esse hábito começou ano passado e piorou na véspera do meu afastamento do trabalho. O cookie virou, em certa medida, a cara do meu burnout.
3) Em 2023 empilhei todas as roupas apertadas em caixas para dar espaço a trajes mais largos. Susurrei a mim mesma que guardaria para quando batesse a meta de perder pelo menos 6kg. Nem sei de onde tirei esse número. Optei por peças mais confortáveis. Nunca verbalizei a escolha, mas reconheço agora. Havia um desejo de esconder esse amontoado de pele que me carrega. No curto espaço de três meses, notei as calças mais largas que havia comprado justamente visando conforto causarem incômodo. Era inchaço ou ganhara peso?
4) Quase nada fica agradável aos olhos treinados a gostar do padrão. Nem tudo é, contudo, motivo para se entristecer. Essa movimentação me fez largar mão de peças novas e só comprar coisas usadas em lojas de segunda mão, ou plataformas online usadas para esse fim. O planeta me dando lição de moral.
5) I fuck with myself more than anybody else (it's all love)
6) Parei de me pesar quando uma amiga me deu sermão. Ainda morava em São Paulo, e em uma dessas reclamações sobre estar "imensa" ela pediu gentilmente que parasse. Que era dolorido ver alguém que só veste P reclamando por estar gorda quando ela mal consegue achar uma calça que lhe caiba em lojas de departamento. Vivi uma temporada saudável, onde não passava horas remoendo o que comia ou lamentando pelos dias preguiçosos em que não quis fazer exercícios. Hoje, que uma peça P mal passa pelas minhas coxas, tento repetir a voz dessa amiga repetidas vezes. Talvez seja por isso que me pego enfurecida quando uma amiga que não pesa nem 50kg e tem a mesma altura que eu passa meia hora reclamando que está "imensa".
7) Quanto mais me sinto à vontade a expor as partes mais doloridas em odiar meu corpo com amigas, vejo o quanto estamos todas insatisfeitas. Há desgostos para todos os gostos. Quem fez exercício para compensar a sobremesa, quem toma ozempic para tirar o apetite, quem desmarcou compromissos para não cair na tentação de comer e beber muito e estragar a dieta.
8) A amiga magra que não diz nada sobre vida saudável recebe o rótulo de inspiradora. A amiga fora do padrão que não diz nada sobre o próprio corpo é chamada de empoderada. De mulher corajosa por "assumir" um corpo gordo. Ainda vejo muita crueldade em usar magra como elogio e gorda como xingamento. Esse incômodo, aliás, me leva a pensar no quanto é intragável diminuir mulheres à aparência física.
9) Em poucos minutos revisitando o armário, encontro peças tamanho M, L e XL. A Europa é um continente confuso em termos de tamanhos, pois não parece existir acordo. Na verdade nem faz diferença. Inútil acumular tantas roupas sendo que boa parte já não serve mais e acabo usando variações das mesmas cinco peças. Deveria ter um armário cápsula.
10) Tinha cinco anos quando vesti um collant pela primeira vez para uma aula experimental de ballet clássico. No fim da aula, a professora informou à minha mãe que eu não poderia prosseguir, pois era muito gorda. Talvez faltasse ao meu corpo infantil ossos mais salientes. Como poderíamos nos surpreender, se na época o meu apelido no colégio era botijão de gás?
11) Nas prateleiras, edições das revistas Capricho e Atrevida. Atrizes, modelos e cantoras estampavam as páginas trajando roupas de gosto duvidoso. Era época de calças de cós baixo, com a barriga seca à mostra. Pensando em retrospecto, embora boa parte dessas mulheres estivessem na casa dos 30, o corpo era de pré-adolescente. Para além das fofocas do universo das celebridades, me perdia com páginas de dietas mirabolantes ideais para quem sonhasse habitar corpos similares.
12) Fiz dieta pela primeira vez com 14 anos. Recebia marmitas congeladas com a quantidade de alimentos correta para cada refeição, e seguia tudo à risca. Única coisa liberada para além do que era entregue uma vez por semana em casa era a salada antes do almoço. Na época não pesava as consequências de optar por um regime restritivo tão jovem, porém ao menos serviu para aprender a gostar de diferentes tipos de legumes.
13) Também por volta dos 13-14 anos, comecei a frequentar a academia, onde só era permitido fazer cardio. Voltava à imagem das revistas para adolescentes, Britney Spears e outras musas pop apareciam com a barriga cada vez mais chapada nos videoclipes. Passei a comer menos, descobri uma gastrite.
14) No primeiro ano da pandemia me tornei sedentária. Tentei seguir canais de treinos para se fazer em casa, mas o vizinho do apartamento abaixo do nosso alegou que meus polichinelos logo colocariam o prédio abaixo. Larguei mão e só voltei a me exercitar quando nos mudamos, no fim de 2020, dizendo a mim mesma que embarcava nesse processo para ajudar a saúde mental. Mas eu sei que só queria mesmo emagrecer.
15) Cheia de receios, busquei ajuda de uma nutricionista. Estava no impasse de querer perder peso, mas sem precisar passar por restrições. Tivemos altos e baixos. Reduzi medidas, voltei a me ver bem em roupas mesmo sem ter perdido os 10kg adquiridos na pandemia. Até a primeira ida ao Brasil no fim de 2021, início de 2022. O peso que recuperei na viagem é apegado, comigo decidiu ficar desde então.
16) No processo de ter mais atenção a eventuais episódios de comer emocionado, desenvolvi uma relação mais saudável com a atividade física. Virou parte inegociável do meu cotidiano, pois só então entendi o quanto era benéfico pro meu estado mental ao longo do dia. Mas no fim do ano passado, sobretudo no segundo semestre, vi as roupas mais uma vez apertadas na região abdominal.
17) Minha carne já não sustenta mais a carga emocional? Ninguém havia me contato que a pior parte de um burnout era contá-lo aos outros. A culpa de se afastar do trabalho “só para descansar” é mais pesada do que todos os elementos que me levaram a ter um piripaque em outubro do ano passado. Veio a percepção de estar meu corpo igualmente inflamado pelo burnout.
18) Segundo meu IMC, estou acima do peso. Embora não esteja satisfeita com a imagem no espelho, é um tanto paradoxal dizer isso, mas não me vejo acima do peso. Pelo contrário. Me parece um corpo saudável, forte. Sendo honesta, não me é claro o que define um peso, e tampouco um corpo ideal. Mas as calculadoras dos nutricionistas e as etiquetas das roupas tentam, de alguma forma, me tolhir. E a alimentar uma culpa insana de que esses números altos são consequência do meu desleixo.
19) O processo de cura se arrasta. Entre tanto, descobri a frustração profunda de insistir com dosagem baixa, senão negativa, de fé. De tentar construir a fortaleza de adulta saudável enquanto só queria chorar e sujar o rosto de ranho, com direito a colo e cafuné. E de me odiar por estar indignada com a crescente gordura do meu abdômem no momento em que vi o trabalho destroçar minha saúde mental. Mal sabia o que fazer disso, como ia achar tempo para cuidar da parte física?
20) Nessas de ter constância no esporte, a resistência foi para as alturas. Ajudei amigos com mudança carregando caixas pesadas, subo escadas sem ficar esbaforida, me sinto mais disposta. Por que me aflige tanto não corresponder ao padrão estético quando sei o quão forte meu corpo tem se tornado?
Para além dos Estrangeirismos
Habituei-me tanto a colocar referências e dicas ao longo do texto que a sessão “para além dos Estrangeirismos” aos poucos desapareceu. Não prometo que aparecerá em todas as cartas, mas tentarei deixar pelo menos duas dicas “extras” a cada edição.
Em janeiro participei de uma oficina de bordado em papel com a Giselle Quinto. Artista de talento absurdo, admiro o trabalho dela há muito tempo e foi uma honra compartilhar esse momento com outras mulheres. Alguns dos bordados dela me serviram de inspiração na composição deste texto.
Aline Valek celebrou 10 anos de newsletter este mês. Acompanho o trabalho dela desde algum momento entre 2014 e 2015. O talento já me impressionava nos textos de blog e newsletter, mas a autora me conquistou de vez quando lançou o primeiro romance, As águas-vivas não sabem de si (esse título!!!!!). Privilégio imenso poder acompanhá-la nessa jornada enquanto apoiadora. Se insisti em ter um espaço online onde compartilho meus escritos, é muito por ter me inspirado nela.
Estrangeirismos para apoiadores
A próxima edição, que é só para apoiadores, será enviada dia 25 de fevereiro. No meu perfil fiz uma sequência de destaques contando um pouco mais sobre o texto extra que os apoiadores recebem todo mês. Já adianto que antes mesmo do mês fechar deu pra ver muita coisa boa, como All of us strangers, de Andrew Haigh, Praia Formosa, de Julia De Simone, e a animação francesa Mars Express, de Jérémie Périn. Conto mais sobre esses e outros muitos filmes, além de narrar minha experiência lendo Just Kids, da Patti Smith, pela primeira vez.
Deixo um último spoiler da edição para apoiadores, que é Des Maux à Dire, de Bea Lema. Conto tudo sobre os avessos desse bordado lindo da capa:
Lembrando que esse conteúdo extra para apoiadores também é gravado, então dá para ouvir como se fosse um podcast :) Se você não tem interesse ou a possibilidade de apoiar no momento, dá para me ajudar compartilhando com amigos que possam gostar dos temas abordados na newsletter:
Muito obrigada!
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Excelente!!!
Adoraria ter a resposta para a pergunta que encerra o texto, não fosse o fato de eu também estar à procura. É fácil dizer "a gente tem que gostar do que vê no espelho" quando ao redor do espelho as opções são de difícil identificação. Por experiência própria, eu confio: a força física (que é MUITO importante) eventualmente se transforma na força da mente, e por sua vez o reflexo no espelho ganha força também.
tenho pensado em o quanto crescer nos anos 90/2000 destruiu nossa relação com nosso próprio corpo. desde a pandemia acrescentei vários kg ao meu e tem sido difícil aceitar e me sentir confortável. seu texto foi como receber um abraço carinhoso como apoio nessa jornada.