[Edição #59]
Oi, tem alguém de pé aí?
Talvez seja a primeira vez que apareço na sua caixa de entrada. Recebi uma leva de novos assinantes nas últimas semanas. Na hora de se inscrever a uma newsletter, o Substack pergunta se você gostaria de assinar algumas das recomendações daquela pessoa. Muita gente esquece de desmarcar essa opção e assina “sem querer”. Se este foi seu caso e mesmo assim você resolveu me dar uma chance, obrigada!
Deixo também agradecimento imenso a Isadora e Rafa, pois muitos chegaram por intermédio delas.
Escrevo minhas impressões sobre ser estrangeira na Holanda, mas também rolam brisas malucas sobre desgraçamentos que me povoam a mente. Respiro literatura e cinema, e acontece bastante de mesclar essas paixões com minhas reflexões de boteco.
Nesta edição em particular, destoo um pouco do que costumo entregar. Como é de praxe ao fim de cada ano, compartilho leituras, filmes e shows que marcaram esse pancadão de doze meses. Sendo honesta, há muito de memorabília. Mas prometo ótimas dicas.
Já fiz apanhado dos destaques do primeiro semestre, caso queira conferir:
Sigo a mesma linha, e no blocão final compartilho os maiorais de 2024.
Cada conversa com amigos parece déjà vu. Relatos de gente tentando ser adulto saudável a muito custo, se arrastando com a força das duas últimas barras de energia. Ondas de cansaço pesadas, todo mundo tão animado quanto o sol em dias de inverno na Holanda. Abri caixas da memória buscando momentos em que tive um fim de ano disposta, sem grande sucesso. Não ajuda em nada ser o amargor em forma de gente quando o assunto é Natal e fim de ano.
Sem religião, as festividades de dezembro tem pouco peso para mim. Prefiro me recolher neste período e avaliar com calma os erros (risos) e acertos (risos ainda mais intensos) do ano que em breve diz adeus. Desta parte gosto mais, pois é a deixa perfeita para repassar as leituras, shows e filmes do ano e escolher quais me marcaram mais.
Vem comigo?
Aterrar (Julho, Agosto, Setembro)
Casar e engatar uma viagem de lua de mel é viver em estado de glória, daí fica fácil imaginar o desalento do retorno à rotina. Ao menos tinha verão sobrou algo de temperaturas de dois dígitos para conseguir aterrar e voltar a ter, dentro do possível, uma vida normal. Duas mulheres uniram forças para fazer estrago comigo no começo do trimestre: Eva Baltasar e Socorro Acioli, com seus Boulder e Oração para Desaparecer.
Boulder acontece entre correntezas do Chile e o frio glacial da Islândia. Nossa protagonista, título do livro, é enigmática. Avessa a trocas sociais, cai no enlace de uma moça e ciranda na onda emocional que é se relacionar com alguém quando os planos divergem.
É notável a bagagem poeta de Eva Baltasar, o livro é cheio de frases que mais parecem tapas na cara executados com luva de pelica. Não há espaço para medo. Prevalece em Boulder o animalesco, é como percorre a vida. Atitudes precipitadas, busca pelo que lhe satisfaz fisicamente e muitos, muitos buracos emocionais.
Passada a tempestade de neve de Baltasar, naveguei em águas mais tranquilas. Ou melhor, caí na cova de uma mulher desenterrada que não sabe o próprio nome, desgarrou-se de memórias, e não sabe como foi parar naquele buraco no meio de Portugal. A única permanência é a língua portuguesa, que lhe permite comunicar com as pessoas que a resgatam.
Se A Cabeça do Santo é um misto de fantasia e comédia, Oração para desaparecer chega a deixar os dedos grudentos de tanto mel. De uma doçura deleitosa, para mergulhar de cabeça. Acioli é impecável no processo de reconstituição da memória de sua protagonista.
Falando em memória, o reencontro do semestre foi Hiroshima mon amour, de Alain Resnais. O diretor abraçou as palavras de Marguerite Duras, roteirista, e usou as lentes para gritar amor. A sinopse descreve o filme como a história de uma atriz francesa (nossa inesquecível Emmanuelle Riva) que se envolve com um arquiteto japonês (Eji Okada) casado enquanto grava um filme em Hiroshima. Premissa de romance, mas é, na verdade, uma longa reflexão sobre consequências das guerras e do quão traiçoeira pode ser nossa memória.
Superei a melancolia de Resnais e Duras com o divertido Thelma, de Josh Margolin. June Squibb e Fred Hechinger quase me convenceram de serem avó e neto na vida real. As trocas entre eles são adoráveis. Nas minhas investigações sobre o quanto a velhice é negligenciada e discutida com frieza, encontrar Thelma foi perfeito para repensar essas questões com bom humor.
Entre agosto e setembro duas leituras me marcaram demais e vou, sem dúvidas, carregá-las comigo por anos. Cinzas na Boca, de Brenda Navarro, e A história de Roma, de Joana Bértholo. Tive a sorte de ouvir Branda Navarro num evento em Utrecht.
Tietei no final para dizer que gostaria de apagar o Cinzas na Boca da memória só para ter o prazer de lê-lo pela primeira vez outra vez. Há tempos não via uma relação tão forte e singular entre irmãos num romance.
A história começa com esta irmã contando-nos que o irmão acaba de tirar a própria vida. Bem levinho e tranquilo. Dali adiante, é só ladeira abaixo. Navarro explora dramas familiares no contexto da imigração, de longe meus assuntos favoritos. Narrativa rápida, porém intensa. Recomendo com lágrimas nos olhos, pois não está na história o quanto as palavras desta mulher me desorganizaram por dentro.
Bértholo, por outro lado, toca em emoções distintas. Tive os olhos marejando também, mas por outros motivos. A princípio, notei que abandonei a literatura portuguesa quando encerrei o ensino médio. Li algo de Valter Hugo Mãe, mas fora isso, passei longe da produção contemporânea dos colonizadores do país onde nasci. Aproveitei uma ida ao Porto e comprei A história de Roma.
Joana é fada das letras, escreve com amor escorrendo pelas mãos. Tenho fases de pensamentos demorados sobre maternidade, e coincidentemente este livro me caiu nas mãos num destes momentos. Obra perfeita sobre como se espalhar pelo mundo pode ser uma fuga dolorida, porém muito linda, à reflexão sobre ser ou não ser mãe.
No fim do trimestre, três filmes em particular me marcaram. O primeiro foi 78 days, de Emilija Gašić. Nascida na Sérvia, a diretora conta a história de uma família levando a vida durante os bombardeios da OTAN ao país em 1999. Vivem na casa os pais e três filhas. Nostálgica, Emilija filma o longa com uma super8, numa tentativa de reviver memórias de sua infância e trazer uma camada de ‘realidade’ ao seu projeto ficcional.
As atrizes parecem irmãs de verdade, e o filme opta pela simplicidade para picotar emoções dos espectadores em pedaços minúsculos. Consegui me ver como se participasse também da vida daquelas personagens. Isso considerando que nunca estive num contexto de guerra. Prova de que bom cinema nem depende de mil recursos.
Em 2024 fiz as pazes com Portugal e valorizei a produção cultural deles. João Canijo me deixou sem palavras com seu Mal Viver. Tem energia de novela brasileira quando começa, mas de repente pega um caminho alternativo e acelera fundo no drama familiar de pessoas com toda dificuldade do mundo em entender a cabeça estragada de uma mulher com depressão.
Então veio o divertido, e também um pouco triste, A Substância, de Coralie Fargeat. Não vou me repetir, porque escrevi uma edição inteira sobre ele. Mas destaco Coralie porque gostei demais da sua forma de abordar um tema que ainda é delicado e difícil de se discutir com alguma autenticidade.
Saí com reflexões pesadas nas costas, mas me diverti e foi de longe uma das melhores experiências cinematográficas do meu ano. Assistir com outros cinéfilos numa pré-estreia promovida pela Cineville (eles não me patrocinam, mas poderiam!) deixou a experiência ainda melhor.
Em agosto completei sete anos morando no velho continente, e para manter a tradição estabelecida comigo mesma (é) fiz uma edição inteira sobre como tento me entender com este não lugar, passados tantos anos.
Tempo bom, tempo ruim (Outubro, Novembro, Dezembro)
O declínio da reserva de energia começou em outubro. É quando as luzes ensaiam antes de se apagarem de vez e nos deixarem num breu maluco de inverno. Dói o dobro escrever isso no dia mais curto do ano. Inventei moda, typical me, e comecei o curso Engrenagens do Romance, da Carol Bensimon. Escrevo esta edição pensando nas três atividades que ainda tenho pendentes e no quão desesperador deve ser para ela corrigir tantas de palavras alheias.
No meio do curso ela pediu para lermos As virgens suicidas, de Jeffrey Eugenides. Aproveitei a oportunidade de fazer a releitura no original. Vivo relação de amor e ódio com a língua inglesa. Adoro a praticidade, o quanto é possível dizer muito com poucas palavras. Mas falta o que sobra na língua portuguesa: alma. Acho tudo tão seco, raramente me vêm o arrebatamento que sinto fácil lendo em português ou em francês.
Neste livro em particular, Eugenides consegue provocar este efeito em mim. Tem que ser muito destemido para colocar narradores no plural e não dar uma escorregada sequer. É interessante ver a perspectiva dos rapazes tentando imaginar o cotidiano das meninas, e as cenas criadas pelo autor são de chorar. A adaptação de Sofia Coppola é deveras adequada, anda de mãos dadas com o original e ambos ainda me provocam arrepios mesmo após tantos anos dos nossos primeiros encontros. Obras perfeitas para revisitar em 2025, confie na minha palavra.
Também conheci a singular Bethânia Pires Amaro com a coletânea de contos O Ninho. Estava com saudade de ler contos quando ele foi escolhido livro do mês do clube Dedo de Prosa. Bethânia fala sobre maternidade e o universo feminino como ninguém. Virei fã pela faceta ousada, sem medo de criar personagens controversas e mexer nas feridas abertas.
Resenhei a obra na edição de outubro para apoiadores e compartilho um trecho por aqui:
“A capa dá indícios do que nos espera. Penso no ninho como uma imagem acolhedora. Local onde alguns animais chocam os ovos e, posteriormente, abrigam os recém-nascidos. Em contraponto, a imagem da capa é escura, trazendo até um certo aspecto de sujeira. Passada a viagem pelos contos de Bethânia, vi nesta capa uma exploração das nuances do maternar. Pode, sim, haver muita ternura na conexão entre mãe e filho, mas essa relação carrega também um lado sombrio. E a autora é destemida ao tocar em pautas que causam desconforto.”
Com a temporada das grandes premiações de cinema se aproximando, sofro com a vontade de ir ao cinema todos os dias e ver se dou conta de toda a programação. Mas a cinéfila faz o que está no seu alcance de pessoa com trabalho em horário comercial.
Começo por The Outrun, de Nora Fingscheidt. Li críticas negativas pensando que talvez seja pouco exigente, pois gostei muito. Saoirse Ronan entrega a melhor atuação de sua carreira. O filme é inspirado no livro de Amy Liptrot, que pasmem, não li. Conta a história da autora, alcoólatra, que luta por muito tempo para se livrar do vício. Pesado na temática, meio caótico na estrutura. Vejo na direção a tentativa de transmitir um pouco da ressaca física e psicológica dos excessos de álcool. Funciona bem, em equilíbrio com pausas para encher nossos olhos com uma fotografia linda.
Tomei então outra pancada com o Good One de India Donaldson. Nele, uma jovem acompanha o pai e um amigo dele de longa data numa trilha. Nada acontece para além das caminhadas no meio do mato e alguns diálogos, até o tal amigo optar pelo uso totalmente inapropriado de palavras.
Me fez pensar na quantidade de absurdos que mulheres escutam tanto de conhecidos quanto de estranhos nas ruas. Se por ventura recontam o que viveram a alguém, são taxadas como exageradas. Normalizar absurdos virou parte integrante do existir enquanto mulher.
Pedro Almodóvar foi pouco aclamado pelo seu The Room Next Door. Li o livro que o inspirou, de Sigrid Nunez, uma semana antes da sessão, e sinto que a releitura do diretor espanhol me comoveu ainda mais. O tom da narrativa talvez seja menos barulhento, se comparado com outros trabalhos do diretor. Ele usa, contudo, seu olhar detalhista e as cores expressivas que marcaram sua filmografia para discutir a complexidade de querer escolher o momento da nossa morte.
Voltei ao universo das senhorinhas adoráveis com My Favourite Cake, de Maryam Moghaddam, Behtash Sanaeeha. Adoro histórias que se desenrolam a partir de encontros improváveis, e foi ótimo passar uma noite na companhia de Mahin e Feramarz. Os diretores costuram o enredo em melancolia, ele cutuca nossos incômodos, mas antes deixa os idosos solitários se divertirem falando sobre comida, ervas aromáticas, e as músicas que despertam neles o desejo de dançar noite adentro.
Para fechar, ele. Rodou no velho aparelho de DVD da casa dos meus pais no início dos anos 2000, foi arquivo num antigo CPU que se perdeu nas mudanças de casa, e devo ter visto também em algum streaming. Vê-lo restaurado numa sala de cinema cheia, com direito a um vídeo introdutório onde o diretor comenta o aniversário de 40 anos do longa, foi um luxo.
Paris, Texas, do Wim Wenders, é ainda mais bonito na telona. É uma imersão na mente de Travis. Nos primeiros minutos intriga saber o que rolou com esse cara desfeito das palavras. No encaixar das peças, o espectador logo se sente parte daquele contexto, instigado a dialogar com aqueles personagens, iniciar seu próprio exercício de investigação como faz o diretor.
Wenders é precioso demais em dizer tudo nas imagens e nos gestos dos personagens. Os diálogos são breves, mas se costuram bem ao essencial mostrado em cena. Aquela cena do segundo encontro de Travis e Jane segue como uma das coisas mais bonitas que já vi.
Em 2024 confirmei o mito da coluna fraca passados os 30 e poucos. Se um dia aguentei três dias seguidos de Lollapalooza, já nem me lembro mais. Mas podemos dizer que o pouco que vi foi suficiente para cumprir minha cota de amor por música ao vivo. Facilitou bastante na hora de escolher os favoritos do ano.
Os favoritos de 2024 por categoria
Vamos ao que interessa! Todos cansados e curiosos para saber quais foram os favoritos, melhorzões do ano. Quem pulou tudo para ler direto essa parte não seja julgado. Vale esclarecer duas coisas: os escolhidos não foram necessariamente lançados em 2024. Para facilitar minha vida, também não tem ordem de preferência.
Assisti, no total, 119 filmes, e concluí a leitura de 64 livros.
Filmes
La Chimera (2023), de Alice Rohrwacher
Robot Dreams (2023), de Pablo Berger
Sem coração (2023), de Tião e Nara Normande
The Substance (2024), de Coralie Fargeat
Mal Viver (2023), de João Canijo
Menções honrosas
Terrestrial Verses (2023), de Ali Asgari e Alireza Khatami
Radical (2023), de Christopher Zalla
Beau Travail (1999), de Clarie Denis (cópia restaurada que também tive o prazer de ver no cinema)
Livros
Oração para desaparecer, de Socorro Acioli
Cinzas na Boca, de Brenda Navarro
O Ninho, de Bethânia Pires Amaro
O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, de Carola Saavedra
Trilogia de Copenhagen, de Tove Ditlevsen
Menções Honrosas
Boulder, de Eva Baltasar
Annie John, de Jamaica Kincaid
Pachinko, de Min Jin Lee
Shows
Nick Cave no Ziggo Dome, em Amsterdam
Marisa Monte no Het Concertgebouw, em Amsterdam
Kacey Musgraves no Paradiso, em Amsterdam
Patti Smith no Paradiso, em Amsterdam
E para você? Quais foram os destaques de 2024? Me conte nos comentários! :)
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Aproveitarei o recesso entre Natal e Ano Novo para recarregar as baterias, mas estou de volta em Janeiro. Tem algum tema em particular que você gostaria de ver por aqui? Alguma curiosidade sobre ser imigrante, ou sobre qualquer outro assunto abordado nas cartinhas? Me conte nos comentários (ou por e-mail) :)
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro, boas festas e até 2025!