Favoritos do primeiro semestre de 2024
Livros e filmes para conhecer nos próximos meses
[Edição #49]
Ainda escrevo 06 ao invés de 07 quando marco datas no caderno. Levo alguns minutos para me dar conta do erro e rasuro meio embasbacada, porque o mês 08 já bate à porta. 2024 acontece no susto. Chegar na metade do ano é incentivo a fazer uma pausa e olhar para trás. Usar o instante para um balanço geral. Ver o que rolou até agora, como anda a lista de atividades pendentes, reavaliar se algo precisa ser melhorado. Calma, sem desespero, te poupo dos detalhes. Na carta de hoje ofereço salada mista de diário, crônica, caderneta de dicas.
Repasso acontecimentos marcantes ao passo que te conto um pouco sobre como livros, filmes, e comidas conquistaram espaço(s) no meu coração. Fiz algo na mesma pegada ano passado, caso tenha curiosidade em conferir.
Vem comigo?
Ficção como band-aid pro céu cinza (Janeiro, Fevereiro, Março)
O frio define a essência do mês de janeiro no hemisfério norte. Na Holanda, isso se manifesta em umidade, céu carregado, dias curtos, e um sol nem aí para nada, tímido de doer. Assim fica até o meio de março. Em 2024, até mesmo a primavera perdeu a pressa, e precisei suplementar Vitamina D por mais tempo que o previsto. Aproveitei o ritmo preguiçoso para usar a ficção como band-aid às dores causadas pelo céu cinza.
Li, vi filmes, e tracei planos para o ano nestes primeiros meses. Nessa toada escrevi um dos meus textos favoritos por aqui, “Eu não quero viver um sonho”. Era o primeiro texto da trilogia do ódio, onde contesto e abro diálogos sobre sentimentos & sensações popularmente conhecidos como negativos.
Dando argumentos pra quem algum dia disse que eu era tóxica.
Criei coragem para lançar conteúdo pago no Substack, ato de ousadia maior de quem, até dois anos atrás, morria de vergonha de mostrar os próprios textos a desconhecidos. Sabe o melhor? Até agora não desisti. Serviu como inspiração a fazer leituras mais atentas e voltar a tomar notas num caderninho no meio da sessão de cinema (além de tóxica, sou insuportável).
A primeira ida ao cinema garantiu um dos meus filmes favoritos do ano até agora, Robot Dreams, do diretor Pablo Berger. Animação fofíssima com mensagens profundas sobre amizade. Aquele filme para assistir com as crianças, que vão se divertir horrores enquanto você chora num cantinho.
Robot Dreams preparou caminho para outros longas sobre amizade e sutilezas das relações humanas, como Monster, de Hirokazu Kore-eda, Fallen Leaves, de Aki Kaurismäki, All of us Strangers, de Andrew Haigh, e Evil does not exist, de Ryusuke Hamaguchi. A língua espanhola também fez questão de me despedaçar a alma com Radical, de Christopher Zalla, e The Echo, de de Tatiana Huezo.
Radical tem energia de A sociedade dos poetas mortos, mas pegou numa ferida mais profunda. Vi muito do meu país de origem nas sequências, embora a história se passe no México. Fiquei maravilhada com o desenvolvimento dos personagens e o modo como Sergio (Eugenio Derbez) se conecta com crianças tão carregadas de desesperança. Conquistou pela simplicidade.
O mesmo vale para The Echo, documentário com toques de ficção, e verdadeira poesia visual. A comunidade El Echo fica a oeste do México e parece irreal, considerando o fato de viverem alheios a todas as tecnologias às quais temos fácil acesso. Adultos e crianças cultivam a terra, cuidam dos animais, e revezam o cuidado uns dos outros. Tudo isso contado com silêncios contemplativos e ambientação onírica.
Pensar elementos fantásticos que desenhamos sobre nossa realidade, lembro-me de uma das leituras favoritas do trimestre - A casa dos espíritos, de Isabel Allende. Ouvi o episódio de Wiser than me com a autora e conhecer a história dela me tocou demais. O enredo gira em torno da trajetória de uma família vivendo (e sobrevivendo) num país não nomeado, mas que poderia ser o Chile, a julgar pelo terremoto destruidor e os relatos do período da ditadura militar. Quando foi o livro do mês no Clube Margem, descobri que Allende buscou inspiração na própria família, e só deu um jeito de ficcionalizar o que ouviu e presenciou enquanto crescia.
Houve um retorno involuntário ao realismo mágico. Em janeiro, descobri Socorro Acioli através do livro A Cabeça do Santo. Nele, Samuel peregrina de Juazeiro do Norte até Candeia, no sertão cearense. Como último pedido antes de falecer, a mãe lhe pede que procure o pai e avó, únicos familiares vivos, que vivem em Candeia.
Embora curto em extensão, abriga imensidões em si. Entre a caminhada e a chegada à cidade, acompanhamos acontecimentos absurdos e tristes na vida de Samuel. Fiquei apegada já nas primeiras páginas.
Retomo o tema histórias de família com outro calhamaço devastador do primeiro trimestre. Pachinko, de Min Jin Lee, atravessa décadas de história familiar. O primeiro capítulo se passa em 1932, e o último acontece em 1989. Até vejo algum paralelo entre Min Jin Lee e Allende, pois ambas se inspiraram na história dos respectivos países de origem, Coreia e Chile.
Pachinko, contudo, é mais focado nos conflitos de se viver no estrangeiro. A obra é toda ficcional, porém inspirada em fatos históricos que jogam luz sobre o estranhamento entre japoneses e coreanos. Mais de 500 páginas nas quais me envolvi a ponto de sentir que conhecia as pessoas ali descritas.
Li coisas boas demais no primeiro trimestre, socorro. Vou sossegar citando só mais dois títulos. O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, de Carola Saavedra, e a história em quadrinhos Des maux à dire, de Bea Lema. O primeiro é uma coletânea de ensaios. Se Carola arrasa na ficção, se supera nos ensaios. Di-vi-na em todos os gêneros literários possíveis.
Des maux à dire é um achado. A autora bordou (!!!!) algumas passagens e combinou-as com desenhos para contar a história da mãe, acometida por distúrbios psicológicos. Bea aborda, com bastante respeito e uma pegada lúdica, a dificuldade em lidar com pessoas neuroatípicos e como isso pode afetar dinâmicas familiares.
No campo gastronômico, as estrelas da vez foram o Le Bourguignon, do Alfred, e a experiência de jantar no Sushi Morikawa. A carne do hambúrguer ficou cozinhando por sete horas e simplesmente desmanchava na boca. Sem condições!!!!
Já o Sushi Morikawa poderia ser só mais um jantar comum de comida japonesa. Mas o chef é um japonês com bastante experiência na cozinha e que só fala a língua de seu país de origem. A assistente falava um pouco de inglês, suficiente para explicar quais os ingredientes utilizados e dizer que a recomendação do chef era comer com as mãos, como fazem no Japão.
Ostentando sol e amor (Abril, Maio e Junho)
Quando o sol não vem, vamos atrás dele em nós. O segundo semestre começou sombrio, me peguei mais instrospectiva que o normal. Eu e minhas esquisitices de estimação. Por vezes viver parece pesado demais, daí me retraio, perco a energia para responder pessoas para, na sequência, sentir que perdi o timing e agora nem faz mais sentido continuar a conversa a partir de uma mensagem enviada há mais de quarenta dias.
Numa dessas crises parei tudo para lavar o rosto e fazer uma máscara pra pele. Com a cabeça mais fresca, sosseguei o suficiente para cuidar dessa reorganização interna e coroar meu azedume com uma viagem solo para Oslo. Meu corpo tava pedindo uns dias sozinha e perdida para enfim me encontrar.
Viver tão a flor da pele e me tornar vítima das minhas angústias não brotou do além. A reintegração no trabalho e os últimos ajustes da festa de casamento me sobrecarregaram. Passado o nervosismo de organizar o evento e lidar com todas as emoções decorridas dele, até me inspirei a escrever algo bastante pessoal sobre meu relacionamento. Compensei a trilogia do ódio com um texto puro amorzinho.
Tomei sol e muito banho de mar entre o Ceará e o Rio Grande do Norte na nossa lua de mel. Inverno brasileiro, tudo para mim. Nas três semanas regadas a água de coco e caipirinhas, além de comer muita carne de sol com baião de dois, engatei uma leitura na outra. Escolho livros no modo aleatório. Pode ser por curiosidade após ler a contracapa, dica de amigos, vídeo no Youtube. Minha intuição tá boa além da conta, pois 2024 tem me dificultado a vida na hora de escolher uma recomendação só.
Entre o casamento, as férias e a volta pra Holanda, parei de nadar contra a corrente e desisti de vez de começar ou continuar qualquer série. Noto que isso se reflete também nos filmes. O conforto do meu lar é convidativo a escrever, ler, mas parece não ser ideal para ligar a tevê ou tascar o play na telinha do computador. Acabo, sim, usufruindo das minhas carteirinhas do cinema, onde bato ponto toda semana.
Por isso, quando o assunto é cinema, identifico um padrão. Boa parte dos filmes assistidos até agora foram lançados em 2024 ou 2023. Já na literatura, temos de tudo um pouco. Às vezes leio um clássico, e na sequência pego um contemporâneo, ou uma história em quadrinhos. As estrelas do segundo trimestre foram o livro Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek, e o filme Sem coração, de Nara Normande e Tião. Cometi até textão sobre ambos.
Entre livros, destaco também a Trilogia de Copenhagen - Infância, Juventude, e Dependência, de Tove Ditlevsen, e Annie John, de Jamaica Kincaid. Tove Ditlevsen teve uma vida breve e muito, muito sofrida. Perseverou na escrita, colheu motivos para se orgulhar da própria trajetória ainda em vida, mas mesmo assim acabou afundando em questões pessoais. O que me impressiona na escrita da autora é a transparência.
Funciona como um diário aberto, onde se despe expondo inseguranças e fraquezas. Qualquer análise mais profunda fica por conta do leitor. Ela só quer relatar vivências sem atribuir nenhum juízo de valor.
Saindo da Escandinávia, caí em Antígua, pouco tempo depois do Caribe conquistar independência do Reino Unido. Annie John é filha única, mora com os pais, e vê na mãe sua maior referência. Até entrar na adolescência e testemunhar a peculiaridade das mudanças físicas e psicológicas consequentes desta fase.
A mutação da percepção de mundo respinga na relação com a matriarca da família, o que a força a desconstruir uma série de conceitos que até então tinha como definitivos. É isso, sou fã de carteirinha de um coming of age.
Ganhei uma despedida de solteira no Porto, em Portugal, e em termos de gastronomia a taurina que te escreve foi muito feliz. Posso citar os pasteis de nata da Manteigaria porque a textura é algo de outro mundo, excepcional! Mas todas as refeições feitas naquele país foram divinas. Tão incríveis que só me lembrava de registrar pra posteridade quando já tinha devorado metade do prato, portanto desta vez ficarei devendo imagens.
Para minha sorte, a fotógrafa-anja do nosso casamento garantiu o registro do queridinho de todos entre todas as delícias servidas no dia da festa: raclette. Sim, meus convidados puderam comer raclette à vontade ao longo da noite.
Passei pelo mesmo dilema das fotos no Brasil. Saí enchendo o bucho e na maior parte do tempo esqueci de fotografar. Ao menos guardei a lembrança do bolo de coco gelado maravilhoso da minha amiga Fernanda Lopes, que já entrou no hall de melhores comidas de 2024.
Pronto, acabou! Vamos trocar figurinhas? Me conta o que rolou de mais legal por aí neste primeiro semestre de 2024? Tens alguma recomendação de filme ou livro? Compartilhe comigo nos comentários <3
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, sinta-se em casa! Agradeço pelo suporte e por me receber na sua caixa de entrada a cada duas semanas. Espero que encontre conforto nesses escritos. Te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último domingo de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro e até a próxima!
"Vi muito do meu país de origem nas sequências, embora a história se passe no México." Li esta frase e fiquei pensando em algo que sempre passa pela minha cabeca: que o México é como o Brasil do Norte. Ou o Brasil é o México do Sul. Nunca fui ao México, mas pelo que já vi/li e por contato com mexicanos, acho que sao bem parecidos!
Eu também nem acredito que já estamos em agosto! E, bom, acho que esse primeiro semestre foi bem marcante para você, não é? hehe Que ótimo que você teve coragem para colocar preço no seu conteúdo, tão valioso (e trabalhoso!).
Também gostei de Robot Dreams e já anotei os outros filmes sobre relações. A casa dos espíritos, não sei se já comentei contigo em algum lugar, eu também adoro! É um favorito. Pachinko eu estou acabando agora, e é realmente sensacional (e trágico). A gente se envolve mesmo! Como que aqueles personagens não são reais? O mundo desdobrável parece interessantíssimo, e a capa de Des maux à dire é linda, imagino o conteúdo!
Indicações gastronômicas eu acho sacanagem, porque a gente fica com vontade de provar e não tem como – tem que esperar uma oportunidade de ir à Holanda. hahaha
Por falar em viajar, seu relato sobre a jornada pessoal em Oslo foi muito bonito. Também já tive a oportunidade de conhecer a cidade, então foi especial vê-la da sua perspectiva.
Ainda nos países nórdicos, a Trilogia de Copenhagen deve ser mesmo excelente, tenho vontade de ler.
E sobre a Manteigaria... saudades!
Seu casamento, ainda de lindo, ainda teve comida gostosa, hein? Que sonho!
Não tenho lido nem visto muita coisa pra poder recomendar. Tenho me atualizado em The Bear, não sei se você já viu as novas temporadas; e visto algumas de sci-fi, como Dark Matter (legal, mas poderia ser um filme). Estou lendo Pachinko, como disse, mas recentemente li o livro de uma amiga que gostei bastante, chama-se Pioneiras – acho que pode te interessar, porque também é uma história de gerações e é, primordialmente, uma história de mulheres brasileiras.
Bem, fique bem, e que venha a edição #50!